Desculpe o transtorno, mas precisamos falar sobre homofobia
Era uma vez, há muito tempo atrás, uma doce garotinha que, depois de sofrer diversos apuros, encontrou o seu príncipe encantado, teve um casal de filhos e foi feliz para sempre.
Cinderela, Branca de Neve, Bela Adormecida ou qualquer outra princesa dos contos de fadas, salvo algumas exceções oriundas do século XXI, em que os temas sociais, a exemplo da igualdade de gênero e sexualidade, ficaram mais expostos, o mote das histórias encantadas são sempre os mesmos: uma história de amor entre uma princesa e um príncipe que, após uma série de desventuras, conquistam a felicidade eterna.
Esse é o enredo das novelas, filmes e séries. É também o desejo das famílias para os seus filhos e filhas e, com a estudante Maridia Alves , não havia de ser diferente.
Nascida em uma família majoritariamente religiosa, o destino da jovem de 25 anos estava traçado desde o seu nascimento. Foi assim com suas primas, com as filhas das amigas de sua mãe e, certamente, seria com ela.
“A mulher sábia edifica a sua casa”, ouvia quando era criança, comentários que eram rebatidos com um “eu não vou ser submissa a um marido” ou “eu não quero casar”. O seu posicionamento, sempre visto com reprovação, acompanhou-lhe por todo o restante da infância e da adolescência.
Sabia que deveria casar. Talvez quisesse casar. Era para isso que tinha nascido. Não podia decepcionar a família. No entanto, “foi com uma mulher que conheceu o amor”.
O momento exato em que teve início o seu interesse por mulheres é impossível definir, mas acredita nunca ter se interessado verdadeiramente por um homem, “não como se interessa por mulheres”.
O ambiente acadêmico é ideal para inúmeras coisas, dentre elas, a descoberta do primeiro amor. Foi na escola que Maridia e Nicole (que ela prefere não revelar o sobrenome) se conheceram. Pra ela, se não fosse a presença de uma menina nova, que desde o início lhe chamou a atenção, seria apenas mais um dia de aula. Para a outra, a garota tímida também não passou despercebida. “Lhe achei linda desde o primeiro momento!”, a confissão veio depois de meses, “longos e difíceis meses.”
Estar apaixonada por uma mulher não era algo comum em sua vida, e nem aceitável. Não podia. Não devia. Se não fosse Nicole a enviar um “é de mim que você está gostando?” em uma mensagem de texto no celular, o segredo nunca seria revelado. Sim, era dela, mas, até onde sabia, ela só saía com garotos.
Suas relações afetivas com rapazes foram contadas à Maridia nos oito meses de amizade que antecederam a declaração. Mais velha, Nicole dizia ter tido outros namorados, “mas não se importaria em ficar com uma menina”, falava.
E ela ficou. Elas ficaram. Ficaram até o dia em que Maridia descobrira que o ex-namorado de Nicole, e o anterior a ele, e talvez os outros, eram, na verdade, meninas.
“Lésbica!”, exclamou em meio a um misto de dor e ódio. Não podia acreditar que a garota havia mentido para ela, mas, ao mesmo tempo, não entendia o porquê da mentira. Chamá-la de lésbica não foi o suficiente para aclamar a sua raiva. Precisou dizer que “era mentirosa e que, provavelmente, todos sabiam que ela era uma lésbica.”
As palavras foram recebidas com dor, a dor de quem se sentiu ofendida por aquela que amou. “Você falou como se eu tivesse uma doença contagiosa, como se todos devessem saber da minha doença, pudessem contraí-la”, disse, em meio a uma das últimas discussões.
O motivo da mentira nunca ficou claro, nunca fora esclarecido o porquê disso não ter sido dito, contudo, hoje ela acredita que foi por insegurança, “medo de reprovação, a reprovação que, indiretamente, veio.”
Para Maridia, Nicole mentiu, mas não por maldade, e sim, por medo de assumir quem realmente era. “Teve medo no início, e depois não conseguiu falar”, declara.
Seu comportamento, diante da revelação, ela classifica como homofóbico, “foi uma atitude preconceituosa tê-la chamado assim, num tom pejorativo, tê-la julgado.”
Até 16 de maio de 1990 a homossexualidade era classificada como doença, estando presente na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Em 17 de maio daquele ano a exclusão foi feita, atribuindo uma importante vitória ao movimento LGBT (gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros).
Para Nelson Matias Pereira, sócio fundador e diretor da APOGLBT (ONG responsável pela Parada do Orgulho LGBT de São Paulo), a data de 17 de maio é comemorada pelo mundo inteiro, pois foi a partir daí que a “homossexualidade deixou de ser uma doença pela ciência e se tornou, finalmente, o que ela sempre foi: apenas uma expressão saudável da sexualidade humana.”
A sexualidade apontada por Matias, Juliana Almeida, de 22 anos, descobriu quando tinha 9. Ainda na infância, a menina, que se define como bissexual, percebeu que sentia atração por mulheres, dando o seu primeiro beijo, em uma garota.
O entendimento em relação à bissexualidade só foi possível a partir dos 13 anos de idade, momento em que passou por diversos conflitos, “pois não tinha informação ou com que conversar sobre o assunto”, que não era tabu em sua casa, desde que não fosse com membro da família.
Diferentemente de muitas famílias, na casa de Juliana, gays e lésbicas sempre tiveram acesso, ali, era permitida, inclusive, a presença de sua tia de consideração, que era lésbica e sempre ia acompanhada da namorada, no entanto, com Juliana foi diferente.
Aos 15 anos de idade, muitas garotas sonham com o famoso baile de debutantes, que facilmente pode ser trocado por um passeio de limousine na companhia das amigas, em uma avenida bem movimentada e iluminada da cidade. Foi nessa época, aos 15, que Juliana contou sobre a sua bissexualidade para seus pais, que optaram por ignorar a informação.
A situação ficou ainda mais difícil com a revelação da primeira namorada. Os namorados eram sempre bem-vindos, sobre eles, interessava saber a idade, a profissão, a família e tudo o mais que seus pais julgassem necessário, contudo, com a namorada o tratamento não foi igual.
Se a namorada de sua tia podia entrar em sua casa, com a sua isso não seria possível, a ordem era não levá-la ali e não falar nada sobre ela, “pois era diferente sua tia ter uma namorada e ela ter uma”, disse sua mãe. “Era como se eu estivesse com uma doença. Minha mãe vê dentro de casa a relação homossexual com muito preconceito, mas fora de casa prega a bandeira da diversidade.”
As situações de preconceito, externadas pelos pais, se estenderam também ao irmão, que contou para os amigos que a irmã era “sapatão”. Assim como ele, na rua, até com os amigos ou possíveis namoradas, não era diferente, comentários como “aí, não fico com bi não, cês tão cheias de doença de macho”, partidos de meninas, ou “você já fez ménage?”, vindo dos meninos, são sempre recorrentes.
Para Juliana, dentro do próprio meio LGBT existe invisibilidade em relação aos bissexuais, o que gera questionamentos sobre a necessidade de optar se gosta de homem ou de mulher. No entanto, o pior ataque é o que vem das ruas, por meio dos desconhecidos, como o que foi vítima, em frente a uma balada na Rua Augusta, região central da cidade.
“Eu estava ficando com uma menina na frente do estabelecimento, quando um menino nos cutucou e cantou “Eu gostaria de poder vê-la nua”, “ei, eu quero entrar nessa festinha particular ai”, eu tive que tirar a menina dali e entrar na balada correndo, pois o idiota ficou gritando com a gente por um tempo lá.”
Em 2008 Nanna Lancaster tinha apenas 16 anos e, foi com essa idade que ela sofreu um de seus primeiros ataques homofóbicos: uma tentativa de atropelamento.
O autor do crime foi o pai de sua namorada, que após descobrir o relacionamento homoafetivo da filha, deu uma surra nela e tentou atropelar Nanna na rua de sua casa, na tentativa de acabar com a relação das duas.
O incidente não gerou grandes traumas físicos, pois ela não saiu machucada, contudo, pouco tempo depois a mãe de sua namorada a procurou, para pedir que ficasse longe da menina, pois, segundo ela, isso estava atrapalhando a sua vida.
O namoro de escola das adolescentes não teve grande durabilidade, e hoje, quase uma década depois, elas não mantêm mais contato.
Para Nanna, o interesse por garotas sempre foi comum, pois desde os 14 anos, quando assumiu a sua homossexualidade, nunca sentiu interesse por homens.
Criada em uma família católica praticante, assumir os seus sentimentos não foi algo fácil, mas, para sua surpresa, sua família, apesar da religião, a aceita e a apoia em suas decisões, “o que me torna uma pessoa de sorte, porque não é assim na maioria dos casos.”
A não aceitação da família em relação aos filhos homossexuais foi o que despertou no jornalista Iran Giusti a necessidade de criar uma república de acolhimento para receber LGBTs que foram expulsos de suas residência.
De acordo com um levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Data Popular, que ouviu 1.264 pessoas em todo o país, 37% dos brasileiros não aceitariam um filho homossexual. Em 2008, o Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) ouviu 492 homossexuais na cidade, e apontou que 30% deles foram marginalizados e discriminados pela família.
Foi diante de números como esses que, em 2015, Giusti abriu as portas de seu apartamento para receber homossexuais expulsos. A atitude deu origem ao projeto Casa 1, inaugurado em 25 de janeiro de 2017, no bairro da Bela Vista, região do centro da cidade.
Por meio de um financiamento coletivo, o jornalista, juntamente com estudante de relações públicas Otávio Salles, e da agência de comunicação Quatro e Um, levantaram um total de R$ 112 mil e alugaram a casa onde funciona a república, que também é um centro cultural, composto com salão de exposição, sala de cursos, palestras e workshops e uma biblioteca aberta ao público.
Atualmente o sobrado atende entre 12 e 20 pessoas, dentre gays, lésbicas e transexuais que, ao entrarem em contato com os responsáveis, são ouvidos e atendidos de acordo com suas especificidades.
Atualizado em 03/2021
Foto por Luis Villasmil em Unsplash