Algumas pessoas a minha volta viviam me dizendo…“Não ajude pessoas na rua, você contribui para o tráfico e as drogas. ” ou simplesmente “ não fale com estranhos.”.
Nunca me importei muito para esses tipos de valores que as pessoas nem sabem por qual motivo perpetuam, e ao mesmo tempo, sempre tive uma consciência contraditória, de querer tomar cuidado com isso. É estranho. São como algumas piadas sem humor que circulam na internet: o bordão, mesmo que sem graça, pega, algum idiota ri, e várias pessoas começam a compartilhar umas com as outras, automaticamente.
É comum ver pessoas pelas ruas, trens, metrôs, vendendo coisas… ver gente desesperada, contando moedas pra pagar passagem ou pedindo dinheiro. Tem aquele chato dito “Viu? Eu podia tá roubando, tô aqui te pedindo…”, com um certo ar de obrigatoriedade… outras pessoas são bem criativas, inventam histórias de doenças que nem se sabe se existem. Outras procuram dizer suas verdades de maneiras catastróficas, e outras são ainda mais inusitadas: pedem dinheiro emprestado.
Um dia, dois travecos me pararam na rua da cidadezinha em que eu estudo. Até parece uma cidade grande, mas no fundo é daquelas bem interioranas, onde todo mundo acaba se conhecendo no Centro da cidade, e eles foram mais que sinceros…:
- Me empresta uma grana? A gente só quer completar uns ‘trocado pá toma’ uma cachaça. – sincerizou uma das travecas.
-
Quanto falta?
-
Um e vinte.
-
Toma.
-
Valeu diva, ah seu vestido azul é um arraso.
-
Obrigada… – respondi com meu riso sem graça.
Num outro calar da noite, saindo de uma festa, a mesma defendeu a mim e uma amiga. Eu estava pedindo um táxi para voltar pra república que morávamos, aí chegaram uns rapazes, metidos a bad boys, pararam e começaram a gritar na rua:
“ Uh! Federupas… querem uma carona? Umas ‘morena’ dessas lá em casa, hein? ” – mas era óbvio que não, respondi com o peculiar dedo médio. Somente garotas desesperadas teriam a audácia de dar para caras com cantadas tão escrotas.
De repente, ouvimos uma voz incomum, na esquina da rua, gritando:
- Some, vai! Seus ‘viadinho’, seus ‘filhotinho de pomba gira’!
Catrina, como eu internamente a apelidei, botou eles pra correr.
- Você era a moça do empréstimo, “alôca”! Do money… da bebida, aquele dia, né?
– Eu sou?
- Ela é? – minha amiga questionava, um tanto confusa.
-
É sim! Eu lembrei de você! E achava que aqueles bofes iam dar a Elza nas duas. Ah, mas aquele dia…você foi tão glee.
-
Dar a Elza…Glee?
-
Olha, eu não tô entendendo mais nada! – insistia minha amiga, na tentativa de participar da conversa.
-
Pra mim Elza é um nome e Glee é seriado. – respondi com ar de interrogação.
-
Não, amapolas, deixa eu traduzir: achava que aqueles caras iam assaltar vocês, e glee, meu bem, eu quis dizer que você foi glamorosa, legal, gente fina, entendeu? Ai…esse povo que é hetero não entende nada, viu…
-
É, a gente é meio burro pra entender o dicionário de vocês…mas obrigada pelo glee.
-
Eu preciso te pagar o money.
-
Não esquenta, no máximo eu ia contar as moedas pra pagar alguma xerox.
Ela sorriu e foi embora. Admirei a Catrina. Sua defesa foi como levar um tapa na cara do meu preconceito, sem revide. É certo que discriminação existe em toda esquina, do lado de cada cidade, mas um travesti não é só um homem que se veste de mulher, é um homem que quer muito ser uma mulher, mesmo que suas tentativas sejam frustradas.
Ter esse desejo aturando olhares de pessoas pseudocabeças abertas e costumes provincianos, numa cidade qualquer, é admirador. Isso sim é ser glee. Ser mulher não é uma coisa fácil.
O táxi chegou … e no caminho, mesmo sem forças glicêmicas para falar, minha amiga ainda perguntou:
- Cris, que história é essa de bebida… centavos… glee…? Achei aquela traveca meio maluca…
-
Depois, eu conto a história. – E eu nunca mais toquei no assunto…
Catrina talvez não leia, mas agora, essa certa amiga já sabe.
(Este conto foi publicado no livro de contos “Quasi di Verdadi”, saiba mais aqui.)
Quasi di Verdadi
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