Era um garoto paulistano…

Era um garoto paulistano…

Daqueles que ouviu da mãe certas colocações que pareciam quase textos prontos, mas que encaixavam perfeitamente em sua personalidade curiosamente aventureira. “Você quer abraçar o mundo, filho”, “Mas você não se decide nunca mesmo, né?” E a clássica “É, mas não dá pra ter tudo…”.

Cresceu, mudou de casa mais vezes do que de corte de cabelo durante a vida e se estabeleceu ali na Zona Norte, perto do metrô Santana. Em quase todos os locais que chamou de “perto de casa”, sentiu a cidade ferver, e tempos depois descobriu que era a vez dele entrar naquilo e ferver com a cidade.

São Paulo sempre foi seu quintal, embora ele pouco conheça seus caminhos e flores crescendo no chão, e foi assim que ele acordou naquela manhã comum. Lembrava o caminho de casa até o trabalho, e só. Sabia que ia acordar, jogar as cobertas para a frente, trocar de roupa, tomar café, escovar os dentes e colocar a marmita na mochila, para só então retirar a chave pendurada do lado da porta e sair de casa.

Fez o trajeto como sempre fazia, ouvindo música, rádio ou o que quer que fosse. Entrou em Santana e depois de certo tempo desembarcou na Paulista às 9h49, sabendo que demoraria ainda 20 minutos para chegar no trabalho, sendo que seu horário era às 10h00. “Atrasar faz parte dessa cidade”, pensou consigo mesmo.
Chegou ao destino 9h58, afinal, quem prevê horários corretamente em São Paulo?

O trabalho foi o mesmo de sempre: escreveu alguns textos, auxiliou em algumas questões propostas pela chefia, almoçou, terminou o serviço programado para o dia e saiu, lembrando que esqueceu de escovar os dentes pelo caminho, quando notou que o gosto do café das 15h00 ainda estava em sua boca. Pegou o ônibus.

Por alguma razão, embora rotineiro, o dia parecia diferente. Ele sentia que era pouco, que era mais um naquela massa de gente indo até o mesmo local naquele veículo que mais parecia um caminhão de carga viva. Desceu três pontos antes para ir andando, e sentiu-se melhor assim. Beijava o ar com seus lábios escondidos por baixo da barba e caminhava lentamente até o metrô.

Chegou na estação, desceu as escadas e se viu em mais um mar de gente fazendo a baldeação para a Linha Amarela. Dessa vez ele foi junto, ou foi empurrado junto. Não sabia.
Passou a rampa, desceu todas as escadas que davam acesso à linha e foi até o último vagão “é sempre o mais vazio”, pensou.

Parou em frente à porta de vidro.

Seu reflexo não mostrava o que ele queria ver. Os pelos da barba pareciam menos bonitos dali, sua fisionomia estranhamente desumana refletida pela divisão entre o vidro e a parede o incomodava. Ele não era aquilo, decididamente não era.
Deu alguns passos para trás, olhou em volta. Filas, filas e mais filas de pessoas fazendo a mesma coisa que faziam todos os dias, e ele novamente era só mais uma.
Transgrediu.

Correu como o vento pelas escadas, sentindo a emoção de uma aventura que nem sabia qual podia ser. Ansiava pela sensação de beijar o ar de novo, de conhecer coisas novas, de agarrar uma “falta de rotina” que sempre desejou. Sentia o corpo leve.
Saiu da estação com um mapa em branco na cabeça, que sentia que precisa preencher. Correu para a direita, viu bares e tipos de pessoas que nunca tinha visto, colocava em sua cabeça que precisava quebrar aquela regra de ter todos os dias iguais, ainda que em plena quarta-feira, às 18h32 da tarde.

Decidiu correr para o outro lado. Passou pelo Conjunto Nacional, atravessou a rua e continuou a descer a Augusta até que cansou. Parou para olhar em volta. “Cadê todo mundo?” “Cadê a vida dessa cidade que eu vi tantas vezes?” “Onde foi parar quem passeia, quem corre?”. Começou a sentir medo. A cidade pode ser assustadora quando está vazia.

Pendurou a mochila nas costas, pegou o telefone e ligou para um taxi. Não ia de maneira alguma subir aquela rua vazia depois das 20h00 da noite.
Esperou o carro. Entrou.
Me leva para o metrô”, disse para o motorista.

Nada foi falado durante a corrida. O garoto chegou, pagou e entrou na estação Paulista. Colocou os fones de ouvido. Olhou-se no espaço entre o vidro e a parede, exausto. Reparou nos pelos da barba, em sua fisionomia, em seus olhos cansados.

Desistiu.

“Só quero ir para casa”, pensou.
E entrou no metrô lotado junto com a fila de pessoas atrás dele.

Atualizado em 02/2021.
Foto por Yuri Catalano em Unsplash

Sobre o autor

Um cara que é estudante de jornalismo (quase) dedicado, com uma barba ruiva que só vê barbeador (bem) de vez em quando e que gosta de tentar entender o que se passa pela cabeça das pessoas. Meio maluco, mas se entende com a bagunça que é sua mente, gosta de videogames e quadrinhos e é aficcionado por buscar explicações (não) científicas do mundo em que vocês acham que ele vive. Tudo isso enquanto toma uma xícara de chá e ouve discos de vinil de várias décadas atrás.

[fbcomments url="https://www.sobrevivaemsaopaulo.com.br/2015/09/era-um-garoto-paulistano/" width="100%" count="off" num="5"]